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Rita Roquette

A Educação dos Forasteiros


Houve um momento em que, no meio do zum zum do trabalho como designer gráfica numa grande empresa em Lisboa me apercebi que o brilho que via no mundo se desvanecia por entre o pulso cansado dos cliques e do ecrã hipnotizante.

Com a certeza pouco incerta dos 22 anos, nesse dia decidi que não iria voltar a trabalhar dessa forma desencantadora. Na semana seguinte reuni com o director do departamento e anunciei que: " Vou sair para voltar a aprender!" ele provavelmente achou-me ingénua, eu achei-me numa pessoa com mais garra e vontade.

No mês seguinte estava a trabalhar num hostel no turno nocturno, era bastante exigente, mas foi aí que aprendi a gostar de pessoas e de todas as histórias que carregavam nas suas mochilas. Durante o dia quase não conseguia dormir, os dias pediam demais para ser vividos e a promessa de que não ia voltar a esquecer-me da dádiva que a vida é estava feita. A casinha lá na Bica era laboratório de experiências, o cartão que ia encontrando pelo lixo passou a ser tela e as ruas passaram a ser espaços que falavam em voz alta, mas não humana.

Na cidade, o fora era bem maior que o dentro, os dias eram passados nos miradouros, parques, jardins botânicos.... E é isso que tenho a agradecer a uma cidade como Lisboa, onde a luz consegue puxar as pessoas fora de casa, suga-as como se não houvesse resistência possível.

A vontade de viajar crescia com essa luz e com os relatos de quem visitava a cidade ainda moderamente turística. A mochila já muito viajada que arranjei na Feira da Ladra serviu o seu propósito e assim fui para o Brasil. Sem dar conta de forma consciente da transformação que se havia dado em mim, o primeiro lugar onde fui parar quando cheguei ao Rio de Janeiro foi mesmo o Jardim Botânico.

Atravessei em modo de anã a avenida de palmeiras reais, perdi-me de amores com as plantas carnívoras e ganhei asas com as grandes borboletas azuis - Morpho spp. - que circundavam um recanto do parque solarengo. Senti-me uma naturalista, numa expedição sem fronteiras e o resto todo da viagem foi dedicado à flora, à natureza vibrante de um país tropical. Afinal estava certa, o aprender está no sair, não só de um emprego chato ou do nosso país, mas fora das portas dos edifícios.

Acabamos por ir viver para a Grécia, onde os cheiros das plantas aromáticas espontâneas vivia connosco e eram como se nos convidassem a aprendermos mais e mais, de volta a Portugal o aroma era outro mas o aprender estava sempre entusiasmado. Vivemos em tendas, fizemos casinhas para servirem de abrigo, co-criamos jardins, mas o estar fora é o que continua a ser a grande sala de aulas.

Hoje em dia há uma forte tendência para a adesão às escolas alternativas ou de sistemas não convencionais, mais holísticos, mas arrisco-me a dizer que a educação não parte de um currículo e muito menos de um edifício mas sim na curiosidade sã que desperta por nos sabermos parte da natureza. Sinto-me ainda aquela pessoa que falou com o director há 8 anos atrás, saio de manhã para aprender e numa tentativa de imitar a natureza quando aprendo quero ensinar, porque sei que ao ensinar volto a aprender com quem partilho.

O nosso grande foco na educação são as crianças porque como todos sabemos elas são o futuro, mas a grande resistência está realmente em nós adultos, no quanto nos esquecemos de brincar, de experimentar sem ter que fazer as coisas perfeitinhas, no errar e rirmo-nos desses erros porque sabemos que irão fazer nascer em nós mais criatividade. Confundimos aprendizagem com certificações, damos mais valor a créditos do que a experiências e no fundo esses créditos é que nos fazem acreditar nas pessoas e até nas nossas crianças, que pressão...

Muitas vezes ouço: "Ah não és bióloga? Pensei que eras... Afinal o que é que és?" rio-me por dentro e talvez por fora com esta pergunta, às vezes respondo que sou herbalista ou que me dedico à etnobotânica, outras vezes digo que todos somos bio - logos, já que sendo parte da vida, todos estudamos a vida. Continuamos a não aceitar o que parece vir fora do pacote, não rotulado, aqui deste lado de fora felizmente as placas de identificação de espécies não existem e é essa a razão porque a curiosidade se mantem viva neste regime de auto-educação que persiste.

As disciplinas separadas e com horas dedicadas não existem nesta forma de aprender. A disciplina em si é aceitar que nos desfolhamos nas muitas vertentes que faz de nós seres únicos. É na disciplina dura de estar aberto a tudo, a não nos fecharmos em compartimentos e definições rígidas, aceitar que aquilo em que eu acredito hoje pode e com certeza mudará um dia. Enquanto passo os meus dias entre o observar plantas, desenhando-as ou fotografando-as, ler assuntos que me despertam o interesse como a botânica, a antropologia, a culinária, a biologia, a agricultura regenerativa, a astrologia, a alquimia, ... Aprendo com quem me cruzo, aqui na vila ou noutros sítios, com os que me fazem parar para pensar, que provocam qualquer tipo de emoção em mim ou que até me fazem sorrir. Escrevo textos que juntem o meu interesse numa só música e ainda haverá com certeza tempo para escrever alguma poesia, ir tomar um banho ao rio, regar a horta, acender a fogueira para aquecer a água para o banho, fazer o jantar...

Não é fácil gerirmo-nos a nós próprios, não temos quem nos dite um horário e nos digue o que fazer agora, mas existe a disciplina, a única que conheço e a que mantem a roda do ano viva e a girar. É o estar acordado, querer que o dia em si não passe em vão e que consiga chegar um pouquinho mais fundo neste celebrar que é o quotidiano. Claro que existem momentos de stress, de menos certezas ou até de nos sentirmos perdidos, mas a disciplina de estar abertos faz-nos crer que o que estamos a passar é só uma fatia fininha da roda, um momento que irá oferecer ao seguinte o alimento para nos tornar-mos mais nós e valorizarmos o que temos.

Por um momento pensemos que somos ainda crianças e no que queremos ser quando formos nós, não grandes mas nós mesmos. As vontades tendem a misturar-se, tendemos a gostar de tanta coisa! " Quero ser bombeira, quero plantar árvores e ao mesmo tempo ser artista" ou até " Quero ser cientista e palhaço". Nos padrões dos adultos estas ideias são permitidas só às crianças, porque mal passemos os 12 anos ou a altura dos 135 cm necessária para irmos no lugar da frente do carro acabam por nos dizer que essas ideias não fazem sentido nenhum, que a partir de agora temos que ser mais realistas. Somos nós adultos que constrangimos essa realidade dentro do realismo, só se nos nominarmos de artistas, escritores e agora aos muito na moda empreendedores é que somos de alguma forma aceites, mas mesmo assim seremos vistos como "os fora", os que estão na periferia, os forasteiros sonhadores...

Enquanto eu escrevo cá fora, debaixo de uma ameixoeira, o Nat está a apanhar as ameixas que restam rodeado de melros a almoçar. Escrevo-vos sentada num banco de cedro que o Nat fez num destes dias e de computador pousado na mesa que juntos fizemos para receber mais gente cá em casa. Consigo ouvir a água que vem do rio com a força da energia solar e que cai no lago, as rãs estão felizes. Os pequenos castanheiros germinaram por toda a parte e as sementes da fruta que comemos viram rapidamente árvores. Estamos a inocular o arroz com Aspergillus orizae para fazermos uma "fornada" de miso, outras fermentações de pepinos e excedentes da horta continuam a borbulhar lá dentro, na casinha de fardos de palha de 12 metros quadrados em que vivemos. Fazemos pequenas edições de livros que vendemos em mercadinhos, nalgumas livrarias e no nosso site, damos oficinas para partilharmos o que nos motiva e estamos sempre abertos a parcerias e a trocas de produtos e saberes.

Estamos cada vez mais ao ar livre, somos cada vez mais os que cá fora estamos, reconhece-se pelos sorrisos, pelo o olhar brilhante, pelas canções entoadas pelos pássaros, pelas toupeiras que insistem em deixar os seus escritos no solo ou pelas flores que se formam em frutos. Não somos mais nem menos, somos o dia-a-dia, a noite-a-noite, os professores e alunos, focados por vezes, dispersos noutras, mas o importante é sermos. Na verdade todos somos mais nós quando estamos cá fora.

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