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O cheiro da Terra enchuvada


Dias de chuva, pingas grossas e lentas: que benção!

Com o tempo passado no campo aprendemos a gostar dela, a bem dizê-la, por vezes a pedir-lhe que acalme e outras a chamar por ela, quase que em forma de prece, na tentativa de persuadir a visitar-nos.

Em Invernos de pouca chuva, há pouco que nos pare os movimentos e mais tarde começa-se a ressentir o cansaço de não a termos tido em conta certa. Este ano sentimos que demos demais, que o tempo de pousio interno não foi suficiente e quando a chuva finalmente vem, assenta a poeira da correria e temos mesmo que parar. Aprendi a gostar de Chuva, tal como gosto do Sol ou da Trevoada... Do Vento, estou ainda a aprender a gostar, parece que me entra na cabeça e me deixa baralhada, hei ainda de o perceber em mim.

Cada chuva vem com a sua personalidade, mas todas elas bastante em harmonia com as alturas do ano em que aparecem. As chuvas de Outono são naturalmente tempestadiças, as de Inverno fazem o rio subir a ritmos atordoantes, as de Primavera dão às sementeiras o esverdeado e as de Verão trazem a alegria a qualquer um, pensava eu...

Ao falar com a minha irmã mais velha no seu primeiro dia de férias de Verão, apercebi-me do quanto me esqueci da forma como quem vive na cidade vê o tempo. Estava ela a ir de comboio em direcção ao algarve e quando lhe disse que aqui chovia disse-me:

- Que horror, aqui, já quase a chegar ao Algarve, estão 26 graus!

- Ah mas sabe tão bem esta chuva... - disse eu

- Imagina alguém que ande a sonhar com férias de Verão, a praia, o sol e de repente... chuva!

Mas aqui não há horror, a chuva que neste momento cai lá fora traduz-se em calma, em tempo para fazer coisas internas, ao lado de uma chávena de água quente perfumada. A Terra seca absorve às pinguinhas toda esta humidade do céu, tal como nós, as plantas sentem um chamamento a puxá-las para o seu interior, hoje não precisam de receber Sol, levam a água até dentro delas, o banho tão esperado. Mas esta água não entra em nós de forma automática, nem de uma vez só, é uma sedução lenta que nos retém em vários sentidos até que nos faz redimir e aceitá-la por todo.

O som do chover, a luz sem temperatura e o cheiro da Terra enchuvada convence-nos a entregarmo-nos por completo... Este cheiro perdura na memória de qualquer um, mesmo na dos que habitam a cidade. É o cheiro que não é só cheiro, é um mecanismo que induz a intuição, uma forma que a Terra e os seus organismos usam para comunicarem connosco animais.

Petricor

Existe uma palavra que nasceu na alma de dois geólogos australianos que estudavam este cheiro de terra molhada tão acolhedor, Petrichor quer dizer petra - pedra e ikhor é a essência que corre nas veias dos deuses em vez do sangue dos comuns mortais. Estes dois investigadores perceberam que as plantas exudiam um óleo volátil durante os períodos de seca, que depois eram depositados na terra seca e nas pedras. Este óleo, repararam eles, atrasa a germinação e o desenvolvimento das plantas em redor, até às nuvens se formarem de novo nos céus...

Nos períodos de chuva, especialmente chuva suave, é libertado um conjunto de compostos como óleos voláteis e a geosmina, que nos faz sentir este cheiro tão Terra, tão Casa e que faz as plantas despertarem.

Geosmina

O seu nome tem raízes gregas e significa o perfume da Terra. É um composto orgânico ou substância química produzida por actinobactérias quando em contacto com um certo nível de humidade. Uma destas bactérias é a Streptomyces coelicolor que habita os solos e possui um ciclo complexo de desenvolvimento micélico, para além de libertar o composto volátil da geosmina também libera esporos e outros compostos actualmente estudados para usos medicinais.

O interesse e estudo da Geosmina que nasceu nos anos 60 veio provar o quão sensorialmente ligados nós estamos ao planeta que habitamos, não fossemos nós o desenvolvimento e aperfeiçoamento de toda esta interacção que experienciamos com a Terra. Este cheiro libertado pela humidade terrena ajuda-nos a encontrar sítios com água e é usada por vários animais e insectos para encontrar fontes de hidratação em locais onde ela possa ser escassa.

O nariz do ser humano é extremamente sensível à geosmina, o que pode provar o uso do olfacto na detecção de prados e locais férteis em alturas de fome e escassez, é a razão pela qual nós podemos "cheirar a chuva" que aí vem. O camelo, no entanto, devido à ecologia extrema que define o seu habitat natural, desenvolveu uma capacidade ainda mais sensível à geosmina, podendo detectar água até 50 quilómetros de distância e encontrar um oásis para inundar a sua sede. As minhocas terrestres são também elas sensíveis à geosmina e tendem a migrar para sítios que tenham um teor mais alto e que por isso sejam mais húmidos. As plantas também incorporam a geosmina, as ciano-bactérias, algas, as beterrabas e muitas outras espécies de plantas libertam geosmina e extendem-se até ao ponto de mimicar a geosmina para atrair animais que julgando chegar perto delas para beberem água acabam por polinizar as suas flores.

A exactidão da criação de nomes científicos

Desde que comecei a estudar as plantas e o mundo natural que desenvolvi um gosto especial pelas palavras, que num meio tão dito científico acabam por ser mais poéticas e exactas, será que a poesia não é a exactidão em si?

A sinestesia leva a que os sentidos que se achavam separados se abracem, nada é mais exacto do que a pluridade que se une nas suas diferentes visões sobre o mesmo tema. Por isso é que esta chuva é uma benção, pela água que nos enche or rios e faz as plantas crescerem, pelo seu cheiro reconfortante e pela criatividade que desponta em palavras como petricor ou geosmina.

Nós nomeamos aquilo que nos inspira, das primeiras palavras que dizemos até às últimas que descobrimos, todas elas vêm com o toque de inspiração e criatividade que os muitos antes de nós fizeram questão de evidenciar em canção sonante. Tal como os cientistas que nomearam o cheiro de dias como o de hoje, se houver abertura à inspiração terrena todos somos poetas.

"A criatividade gera novas formas, novos padrões, novas ideias, novas formas de arte. E não sabemos de onde a criatividade vem. É inspirada de cima? Brota de baixo? Apanhada do ar? O quê? A criatividade é um mistério onde quer que a encontremos..."

Rupert Sheldrake

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