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Rita Roquette

Carta a um Mestre Verde


Vivias onde sonhavas viver. Criavas mundos para te preencher e não necessariamente para os preencheres.

De cada vez que o teu jardim se abria, tu abrias-te com ele. Abrias-te em sorrisos que se vêem como portas, portais talvez. Foste o primeiro Jardineiro d'Alma que conheci e como um primeiro amor ocuparás sempre o lugar de primeiro. O teu tamanho rasteiro espalhava a bondade, tal como as "coberturas de solo", os morangueiros que escolhias para tapetear os recantos, o entre das pedras que pisavas. Não sei se fui eu que sonhei ou se tu acreditavas mesmo que a criação divina te vinha através do verde. No teu ajoelhar diário, no humildecer que perfomavas como dança tu eras um com o Criador. Eras cada espécie em que tocavas, cada canto de pássaro por quem esperavas visitas. Por entre as cortinas de sonhos, chuveiros de Tillandsia, num verde de éter conseguias ver em que é que na semana seguinte o teu mundo se iria tornar.

Desde pequena que eu mudava constantemente o meu quarto. Numa sucessão de movimentos arrastados, a força de vontade era sempre mais forte do que a física e assim ia dando um novo tempo ao espaço que habitava. Tu fazias o mesmo, porém mais lá fora do que no dentro. Imagino-te na casa onde cresceste na Holanda, aquela que durante a Guerra foi visitada e onde mais tarde se instalou o exército nazi. Imagino o teu pai florista, a tua mãe cuidadora e tu ainda verde nos anos. Foi lá que aprendeste que o teu sangue não era vermelho, que era a mistura de Céu e Sol e que tu próprio descobriste como fazer a fotosíntese... Ah por isso é que fazias questão de te molhares nos aspersores quando os ligavas nos finais de tarde de Verão! Se me tivesses explicado que eras planta teria te regado mais vezes, não o fiz, não me tinha apercebido. Andava ocupada noutro jardim, um jardim que era mais selvagem que o teu, um jardim que mesmo distanciado se sabia parte de ti, do que tu ias ensaiando nas telas que criavas. O teu génio, incompreendido por muitos, era selvagem também. Não porque era um verde abandalhado mas porque no espaço civilizável da tua casa não encontraste forma de adequar a tua linguagem natural, as linhas rectas eram-te estranhas.

Acho que por isso é que gostei e gosto tanto da ideia de te ter como Mestre, afinal tu foste a única planta humana que conheci. Não eras uma planta qualquer, eras uma planta que de tão silvestre se aprendeu a cultivar. Eras uma erva danada que nos 90 anos que se tentou enraízar aqui na Terra se foi esquecendo de se semear também. Agora tenho que aprender a transplantar-te do teu jardim para dentro de mim, tenho que me lembrar que como tu me ensinaste:

" A poda deve acompanhar o transplante para criar raízes mais fortes."

Já nos deixaste há meses, só hoje o soube. Numa maneira fora de tempo, numa poda atemporal vou rebaixando a árvore que sou para estar mais perto da terra em que o teu corpo se tornou. Não fiquei menos, de ti ficaram todas as varas podadas. Cada uma foi posta na terra ainda húmida das chuvas de Inverno, neste solo ganham raízes e hão de um dia ganhar folhas, flores e frutos. Eles vão abrir as portar que tu tiveste receio em abrir, vão semear todas as sementes que tu te esqueceste de semear. Vão germinar porque são livres, recriam-se na vida verde que eras e que deixas-te para a continuidade.

A tua casa foi vendida. A tua preocupação de encontrares quem soubesse sentir o paraíso no jardim afinal não tinha razão de existir. Sem o saber como, a vida saberá, fui lá ter a tua casa e conheci o novo habitante do espaço que ainda é teu mas que surpreendentemente se está a tornar de todos. Ele sabe o que tem em mãos, mesmo sem te ter conhecido em vida ele dedicou-te um dia de homenagem. Mesmo sem te conhecer o tamanho ele sabe que os túneis baixos eram talhados para te involver. Teve que os abrir porque ele é mais alto, mas sabe que também caberias lá.

As últimas plantas que me ofereces-te foram os Lírios-do-Vale e agora sei, que no teu jeito discreto e complexo, me estavas a tentar dizer sob a forma dos 38 glicósidos cardíacos que as fazem, que o teu coração não bateria por muito mais tempo. Já estava a bater a um ritmo diferente, uma canção de flor virada para baixo. Tinha-te prometido que fariar um herbário do teu Jardim Botânico. Disseste-me que tinha que me apressar porque o tempo já não era muito. Lá tinhas a tua razão, mas não toda. O novo habitante ficou radiante com a ideia e agora o tempo prolongou-se, a vida expande-se até outras vidas.

Só me resta agradecer-te Yak.

Agrader-te por me teres mostrado que afinal existem plantas de 2 pernas e que o mundo que habitamos é e sempre será criação nossa.

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